quinta-feira, 27 de agosto de 2009

ENTREVISTA com Jean Douchet

Pode-se falar em renovação do cinema?

Jean Douchet: A renovação é fenômeno normal, em arte: há épocas clássicas, épocas maneiristas ou flamboyantes, barrocas; depois disto, alguma coisa renasce. O movimento que era bem visível há 5-10 anos, de capitalização do cinema precedente, no que tinha de ‘alimentar’ para o imaginário dos outros, começa a desaparecer; estamos recomeçando a construir alguma coisa a partir daquilo. Vê-se claramente em todos os cinemas do mundo, dos mais diferentes diretores. Impressiona-me a quantidade de rumos diferentes que o cinema está tomando, em vários lugares do mundo: pode-se falar do “Dogma”, de Kiarostami, dos cinemas asiáticos, do cinema americano que se torna múltiplo – e que não era múltiplo, antes, limitado entre o cinema bem enquadrado de um lado, e o cinema marginal e independente de outro. Tudo isto se mistura cada vez mais. Há claramente uma necessidade de reconstruir um discurso, uma escritura, um pensamento, e acho que isto está ligado a uma necessidade mais geral, mais política e sociológica: a inquietude que se sente em face de um mundo cujas regras já não compreendíamos, pois já não havia regras. E começa-se a perceber que, mesmo assim, há um combate que temos de combater e que isto se traduzirá em filmes; e neste combate que temos de combater haverá também filmes feitos por gente a favor do sistema. De fato, são dois combates, ou contra ou a favor. Um pouco, estamos de volta à Guerra Fria, apesar das diferenças. Haverá – e é simbólico – o campo Spielberg e o campo Kiarostami, os que querem destruir o cinema satisfeito consigo mesmo e os que são contestáveis, porque apostam numa certa baixeza do olhar do espectador.

Não é crime fazer cinema caro, pode-se fazer qualquer coisa, penso em De Palma ou Coppola, mas estes não são os cineastas que têm mais dificuldades com o sistema. Os que não têm dificuldades com o sistema são os que fazem os filmes mais caros, para cercar todos os sentidos do público. Os outros cinemas são cada vez mais diversos, e o ponto em que se pode pensar em engatar uma segunda é que a multiplicidade dos cinemas faz surgir cada vez mais gente interessada por este cinema. O problema é que se divulgam hoje todos os cinemas, filmes que não se viam antes e hoje se vêem, isto faz ferver muito o ‘caldeirão cultural’.

“Cinema de conhecimento”

Sou por um cinema de conhecimento, o cinema é feito para fazer-conhecer, é sua origem científica; ou o cinema é feito para distrair e divertir, o que não é mau em si, não há por que ser contra. Também pelo divertissement pode-se chegar ao conhecimento, como Hitchcock mostrou tão bem. Não há incompatibilidade. Inaceitáveis são, isto sim, os que recusam completamente o fenômeno do conhecimento e querem impor uma ideologia, uma visão de mundo. Kubrick fala disto em seu último filme: de o quanto estamos contaminados, cancerizados pelo dinheiro. Estamos destruídos, perdoe-me a expressão, até os colhões. Estamos destruídos. Não é verdade que haja instintos, somos produtos da sociedade até nossas partes mais íntimas, somos ligados ao dinheiro, o que se traduz no filme pela luz, a luz é a encarnação do dinheiro, como as sociedades sonham o mundo. Estamos destruídos por estas cintilâncias e gostei muito de que os americanos não tenham gostado do filme; é sinal de que não conseguiram não sentir.

É curioso, porque, se se pensa no período 1907-1910, quando a surpresa do cinema começa a diminuir e tudo passa a ser jogos de trucagem dos quais, parece, o público gosta... imediatamente depois surge Griffith, que mostrará que o cinema é completamente outra coisa. Hoje, é esta avalanche de efeitos especiais, o virtual etc. Nada disto é importante. Nada impede que se use seja o que for, qualquer procedimento, pode-se perfeitamente fazer um filme completamente virtual e fazer um grande, enorme filme. Tudo dependerá do pensamento que haja no filme. Se for completamente comercial não interessará. Os filmes estão ficando cada vez mais caros e, um dia, alguém aí quebra a cara.

“Os grandes filmes estão sendo fetichizados”

O conhecimento hoje se reduz à fetichização do próprio filme: conhecemos todas as falas, respondemos em coro com os atores... É uma espécie de ridicularização do filme, mascarada em manifestações de adoração. O jovens não viram os filmes, como nós, em cinemas, em película, em 35mm.; vêem em vídeo. Mas, de qualquer modo, eles têm uma relação possível com o cinema, que é franca, interessada. É verdade que já não crêem no cinema, conhecem os truques, zooms, travellings etc. Então, procuram a parafernália tecnológica dos efeitos especiais, ou, ao contrário, querem encontrar elementos de ‘verdade’ que os interesse ver. Ao mesmo tempo, os cineastas têm de considerar que o público já não é virgem, quer dizer, é blasé. É preciso oferecer ao público, também, um modo de ver. De que modo você vê? Você vê para quê? Se vê apenas para comprar o sensacional, a mercadoria, então este olhar é imundo.

Se o comunismo morreu, em colisão frontal contra o muro de Berlim, estou praticamente convencido de que o capitalismo morrerá logo, em colisão frontal contra o muro do dinheiro, o próprio dinheiro que move o mundo, à custa de correr desatinadamente rumo a nada. Estamos correndo o risco de desequilibrar equilíbrios vitais e isto ganhará forma visível, cinematograficamente falando. O público pressente isto. Os jovens, hoje, são atormentados pelo desemprego. Isto altera o modo como eles vêem o mundo. É preciso que alguém ponha em imagens, na tela, estas angústias, estas perguntas... mesmo que não sejam reproduções naturalistas, ‘como na vida real’. Rosetta por exemplo, que não é nenhuma obra-prima, é um filme importantíssimo porque muita gente se reconhece naquela personagem, que é excessiva, sim, mas que diz isto. E há um olhar que vê aquele filme, um efeito, um estilo. Rosetta é Palme d'Or em Cannes, se comparado a filmes muito mais prestigiados. É possível, há a possibilidade, dentro do próprio cinema, por imperativo artístico, de nadar contra a corrente do pensamento dominante (que é o pensamento da grana).

Quem queira ser totalmente independente, tem de voltar ao cinema puramente experimental, claro, com câmera digital, ou vídeo, e filmar sem gastar nada, ou gastando quase nada. O experimental também pode trabalhar com orçamento mais folgado, é claro, são possibilidades da escritura.

Se um diretor como Lars von Trier pode trabalhar assim, é porque atraiu capitais. Seja como for, sempre estamos dentro de um sistema em que a obra de arte é mercadoria, avaliada como mercadoria – mas pode ser boa arte.

Todos os cinemas são possíveis. Mas, nos próximos dez anos, se não se mudar o sistema de distribuição, desaparecerá o cinema independente. Ou as salas equipam-se para diminuir os custos de distribuição (cópias, aluguéis, fretes, seguros). O verdadeiro problema é como informar ao público potencial do cinema independente que este cinema existe e fazê-lo desejar conhecer este cinema. As grandes produções não têm este problema, porque se alimentam da culpa que a publicidade comercial cria entre as pessoas que não conheçam os filmes arrasa-quarteirão. A crítica também é culpada, porque não fala senão dos filmes mostrados ‘à imprensa’.

“Todo o sistema tornou-se fantasmático”

Todo o sistema tormou-se fantasmático. Há a grande estrutura, mas não há nada dentro dela. Veja as redes Multiplex. É uma loucura, conversa pra engambelar otários: fingem que nos oferecem variedade, mas, cada vez que pagamos para assistir à ‘variedade’ das redes Multiplex estamos, ao mesmo tempo, matando todo o outro cinema, o cinema independente, quer dizer, estamos matando a multiplicidade. E quando, por acaso, algum filme independente consegue acesso àquelas salas é para ser massacrado pelas baixas audiências, salas vazias etc. Os próprios Multiplexes condenam-se à morte. É o fenômeno do ogro: mais cedo ou mais tarde, o ogro destrói-se, ele mesmo.

O que temos de construir são verdadeiras novas vias para difundir o cinema independente – o que implica, sim, o problema da divulgação e promoção, mas também implica que os críticos critiquem, que os ensaístas pensem e trabalhem e escrevam e falem, que a sociedade produza, afinal, pensamento novo. Isto, pelo menos, seria o ideal.

A realidade é que os críticos vêem cada vez menos, os novos filmes aparecem cada vez menos, cada vez menos surgem novos talentos e, se surgem, são logo atraídos para o cinema ‘velho’ o qual, contudo, não os recompensa pelo talento, mas por quanto cada filme gere, de lucros... E lá estamos, outra vez, em colisão frontal contra o muro de dinheiro, que intimida, quando não esteriliza, os novos talentos.

Teremos uma chance, se inventarmos uma possibilidade real de difusão, em pés de ‘concorrência’, de todos os produtos que o cinema está gerando. A força das majors norte-americanas está em que são os atacadistas, distribuem no atacado e, assim, controlam o mercado. Constróem monopólios... que acabarão por matar, também para eles mesmos, a galinha dos ovos de ouro. A galinha dos ovos de ouro está na multiplicidade, não na uniformidade que, aliás, é cada vez mais cara... e um dia explode, como todos os monopólios sempre explodem.

“A crítica também está presa no paradoxo do ogro.”

Estamos vivendo os momentos finais de um sistema, no qual todo mundo protege todo mundo, ao mesmo tempo em que todos fazem ares de ‘criticar’ os outros, uma ‘crítica’ que, de fato, mais preserva do que visa a transformar. É hora de mudar os modos de produção, de distribuição, de difusão e, também, os modos de ver. O que está aí está agonizando. Jamais houve, na história da humanidade, uma invenção que não tenha encontrado imediatamente o seu utilizador, no sentido mais forte da palavra ‘utilizar’. No cinema, é muito evidente: o cinemascope é Nicholas Ray, o zoom é Rossellini, a película ultrassensível é Godard etc. Quando se instalar um sistema de difusão por cabo, tudo mudará.

Com o vídeo e o computador, não dou dez anos para que haja uma revolução total no sistema. Aconteceu no final do ano 1000, do primeiro milênio, e está a ponto de acontecer também no cinema. Em no máximo 15 anos haverá uma revolução. Acho que as salas de cinema sobreviverão: o teatro não morreu, apesar de ter sido ‘morto’ pelo cinema, como dizem tantos. Desaparecerão as cabines de projeção, talvez se possa receber os filmes em casa, as telas aumentam cada dia mais, ficam mais planas, quase de hora em hora. Como o atual sistema de distribuir filmes poderia sobreviver?

Vai acontecer um terremoto, voltaremos a técnicas antigas. Afinal, o grande cinema sempre foi artesanal, mesmo que não tenha sido só artesanal, mesmo que só a ‘carpintaria’ não baste. E ninguém precisa manter-se preso no seu próprio sistema. Veja os filmes dos Straub, que são modelo de produção autônoma e autogerida. Os Straub atingiram a perfeição absoluta no sistema deles. E é claro que também é preciso respirar, ver o mundo à volta de cada um. Quem se fecha em si cria no entorno uma atmosfera irrespirável, mesmo que seja ‘intrigante’ ou ‘interessante’; é insuportável, mesmo assim.

“Godard, o inescapável.”

Para mim, o único cineasta incontornável, do qual ninguém poderá jamais escapar é Godard. Godard é o grande cineasta do fim do século 20, mas é também o maior artista vivo, consideradas todas as artes. Godard oferece cinema de conhecimento, extraordinariamente aberto. Não estou dizendo que seja alguma espécie de Bíblia, mas é indispensável mergulhar no sistema de Godard, também para, se for o caso, sair dele. Godard abre tantas possibilidades – porque pesquisa e propõe perguntas –, que dali se pode partir para praticamente qualquer coisa. É o autor das mais belas e ricas imagens que o cinema jamais ofereceu, não só ao cinema mas às artes plásticas.

Aprender a digerir Godard é processo lento. Godard está 25 anos à nossa frente. É preciso paciência. No início, o público fugia dos filmes de Rossellini, sobretudo durante a fase com Ingrid Bergman. Hoje há Hou Hsiao-hsien, Kiarostami, Coppola, De Palma, até Cronenberg; também, na França, há revelações, mas ainda não há grandes confirmações. Desplechin, por exemplo.

O documentário

Quanto ao documentário, voltamos à necessidade que todos estão sentindo de ver cinema de conhecimento. Comolli e outros. O documentário propõe uma pergunta importante ao cinema: que imagem, para que olhar? A câmera só tem um olho. Este olho tem de olhar de um determinado modo. Que modo é este?

“O espectador é parte constitutiva do filme. Trata-se de exumar a inteligência do espectador.”

Tenho certeza de que os espectadores acompanham tudo isto e recuperarão a fé no cinema. Se se aceita que o espectador seja parte constitutiva do filme, tudo é possível. Mas degrada-se o espectador se se o vê como alguém que se quer pegar pela goela, para arrancar dele o máximo de dinheiro possível. O público não é uma entidade desconhecida. O público é gente como a gente: às vezes, temos cintura dura, cabeça dura, temos preguiça de pensar. Mas o público também inclui gente que quer pensar, que sabe pensar, gente inteligente. Em muitos casos, trata-se de exumar a inteligência do público. Ou, ao contrário, trata-se de favorecer a preguiça geral. Aí, o movimento é no sentido de embrutecer, de abastardar cada vez mais a inteligência, até, dos mais inteligentes e dos que queiram pensar.

“A interatividade é bobagem, para o cinema.”

Não acredito na tal de ‘interatividade’, para o cinema. Vejo como uma espécie de traição. O pior que poderia acontecer é dar aos espectadores a falsa idéia de que eles ‘sabem de cinema’, que conhecem cinema. A idéia de que qualquer um pode brincar com imagens e, assim, mostrar-se ‘criador’. A ‘interatividade’ no cinema é uma espécie de armadilha: as possibilidades são limitadas, estão contidas nos programas. Converte a arte em uma espécie de joguinho de criança. É bobagem.

sábado, 22 de agosto de 2009

domingo, 16 de agosto de 2009

(...) Dans Les Vampires, je vois les deux enquêteurs guidés par le hasard et uniquement par lui vers la solution du problème, et au seuil de l'atroce: l'un d'eux mourra de s'en être approché trop près; l'autre triomphera, car il le faut, mais son triomphe sera pire que la pire défaite. Dans le même film, les jeunes filles capturées par le drogué, le drogué soumis à son docteur et alimenté par lui, le bourreau soumis lui aussi à la duchesse qui abrite ses expériences, la duchesse elle-même esclave du temps et du vieillissement, forment une ronde infernale (mais calme et ordonnée comme un spectacle) que l'auteur s'efforce surtout de ne pas briser par un commentaire, ou une évaluation morale. Il y isole simplement quelques instants de silence et d'immobilité, où le temps pourra s'arrêter, et qui ne sont en fait que l'attente d'une violence plus grande, ou le cri arrêté dans la gorge. La duchesse (Gianna-Maria Canale), seule dans sa chambre, met en marche une vieille boîte à musique. La musique s'égrène, évoquant un passé lointain. La duchesse s'approche d'un miroir, et s'y regarde. Elle voit ses prunelles fixes qui ne marquent pas d'âge, son visage lisse et immobile où elle ne lit aucune émotion, sinon une immense surprise d'être elle-même. Elle caresse ses joues, sa peau très blanche sous laquelle coule (à peine) le sang d'autres jeunes femmes sacrifiées. A cet instant, ce que nous n'osions pas espérer arrive: le cinéma existe.

Jacques Lourcelles, Un homme seul, Présence du Cinéma nº 17, primavera 1963

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Eminentemente crítico

Ainda não assisti ao filme, Inácio, mas acho importante que a crítica não passe a mão na cabeça dos filmes brasileiros e isso tem acontecido.

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